Além de incomodar a vizinhança, o funcionamento de uma igreja dentro de apartamentos é proibido
A dona de casa Jaqueline, 32 anos, ficou abismada quando os novos vizinhos chegaram ao prédio onde mora, em Barra do Pojuca. Eles encheram a sala de cadeiras e colocaram uma placa acima da janela. Sem aviso e a qualquer hora, visitantes chegam ao apartamento e se acomodam, antes do barulho começar. É que o apartamento 001, Edifício A, do Residencial Caminho do Mar, um conjunto habitacional do programa federal Minha Casa, Minha Vida (MCMV), foi ocupada por uma filial da Igreja Batista Missionária Unidade da Fé.
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Há seis meses, moradores do Residencial Caminho do Mar 3 convivem com cultos da Igreja Essência de Deus (Foto: Evandro Veiga/CORREIO)
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“É um inferno, uma barulheira. Tem dias que isso aí parece uma casa de veraneio, cheio de gente com mala, passam o final de semana todo aí”, diz a mulher que não quis informar o sobrenome. Ela não é a única incomodada no condomínio que fica na Estrada da Cetrel, em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador.
A vizinha dela, Renata, 47, mora lá há três anos com o marido e não vê a hora de alguém tomar uma providência. “Faz muita zoada, abala o prédio e ainda ocupam o lugar de alguém que precisa de uma casa. Não é pra ser igreja, é pra ser moradia”, queixa-se Renata.
Além de incomodar a vizinhança, o funcionamento de uma igreja dentro de apartamentos é proibido. Segundo o Ministério das Cidades, que administra o programa MCMV, “é proibida a destinação exclusiva do imóvel para uso distinto de moradia por parte da família selecionada”.
Alugar e vender até pode, mas só depois de quitado o imóvel e, ainda assim, para fins de moradia. Não é o caso: primeiro porque a quitação ocorre, em geral, após dez anos de pagamento das prestações – e o empreendimento foi inaugurado há três anos. Em segundo lugar, porque, mesmo que o proprietário tenha quitado o apartamento antecipadamente, ele só pode ser usado como habitação.
Ainda segundo o Ministério das Cidades, a ocupação mista, residencial e comercial, das unidades é permitida. “ Desde que mantidas as condições de habitação, não há impedimento ao uso misto do imóvel para melhoria da renda familiar dos beneficiários”, diz em nota. Mas este não é o caso das igrejas no Caminho do Mar.
‘Não sabia’
O bispo responsável pela Igreja Batista Missionária Unidade da Fé, Amadeu do Rosário, mantém a matriz numa casa modesta, sem placa na frente, na Rua Luis Hage, uma via sem calçamento em São Tomé de Paripe, em Salvador. A igreja possui cadastro ativo na Receita Federal desde 1998. Procurado pelo CORREIO, o bispo Amadeu disse não saber que é proibido igrejas em unidades do MCMV.
“Aquela casa é de uma irmã nossa que tá morando um tempo em Camaçari e a gente tá sempre fazendo culto lá. Não recebemos queixa e eu também não sabia que não podia. Vou conversar com o pastor que prega lá e vamos tomar uma providência”, disse o bispo. Segundo Amadeu, a igreja funciona no local há apenas seis meses e com cultos nos finais de semana – os vizinhos relataram a presença há mais de um ano e com cultos irregulares. “A gente fazia os cultos numa quadra que tem ali, mas deu problema e a gente começou a fazer de casa em casa, carregando as cadeiras. A irmã precisou ir para Camaçari cuidar de um parente doente e ficou com medo de invadirem a casa, aí deu pra gente fazer as celebrações”.
Mais igrejas
A Igreja Batista Missionária Unidade da Fé não é a única a funcionar no mesmo condomínio. O CORREIO encontrou mais um “templo” no Residencial Caminho do Mar 3, separado do anterior por mais prédios e um gradil. Desta vez, o alvo da reclamação dos vizinhos é a Igreja Pentecostal Essência de Deus, que também ocupa um apartamento 001, de um Edifício A.
Pelo lado de fora, dá para ver as cadeiras e uma cortina. Mas o CORREIO não localizou os responsáveis pela congregação. Um morador do mesmo prédio diz que a nova vizinhança se instalou lá há seis meses. “O pior que tem aqui é essa igreja”, diz o rapaz, que não quis se identificar.
A vizinha dele, a comerciante Valdelice de Jesus, 60, conta que a pastora responsável pela igreja mora no condomínio, mas não no mesmo prédio onde o templo funciona.
Bem em frente à Igreja Pentecostal do Caminho do Mar 3, no gradil que separa os prédios da Estrada da Cetrel, há outra faixa: “Primeira Igreja Batista Nacional Eloi”. Esta também está registrada na Receita Federal. E o endereço registrado também é no Minha Casa, Minha Vida, desta vez no Caminhos do Mar II, sem indicar edifício ou apartamento.
Segundo a missionária Vanice Rodrigues, que congrega na igreja, o local não tem endereço fixo porque ainda não possui sede. “O nosso trabalho está sendo feito nas casas dos fiéis e no centro comunitário, que fica no Caminho do Mar 3. Por enquanto, estamos tentando a liberação de um terreno para construir a igreja, porque é proibido funcionamento nos apartamentos”, disse.
MPF não tem denúncias; dono pode perder imóvel
Apesar das queixas dos vizinhos, não há registros de denúncias junto ao Ministério Público Federal (MPF) sobre o funcionamento das igrejas no Caminho do Mar ou em qualquer outro conjunto do MCMV na Bahia. É para o MPF que vão as denúncias, depois de uma triagem ser feita pelo Ministério das Cidades, que avalia a pertinência delas.
“Eu recebo aqui denúncias de fraude no sorteio, de construção de puxadinhos, de demora, mas nunca recebi de igrejas. A responsabilidade aí, em princípio, é do dono do imóvel. A outra parte (a igreja), vai sofrer por ser interditada e paralisada, mas a pessoa que é dona pode perder o imóvel, já que está fazendo mau uso”, explica o procurador regional dos Direitos do Cidadão, do MPF na Bahia, Leandro Nunes.
Segundo ele, casos como esse podem ser denunciados no Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) ou no próprio MPF, pessoalmente.
Condomínios sem infraestrutura
Quem vive em condomínios do Minha Casa, Minha Vida tem queixas em comum. A principal delas é a ausência de infraestrutura e serviços próximos dos residenciais. No Bosque das Bromélias, em Salvador, por exemplo, os moradores acabaram criando um bairro: tem barracas de frutas, verduras, bares improvisados, mercadinhos, assistência técnica, boxes de perfumaria, em meio às 2,4 mil unidades.
Muitos dos serviços funcionam dentro das unidades habitacionais, ao mesmo tempo em que o dono do imóvel mora nele. O CORREIO visitou o condomínio e encontrou até um circo montado próximo ao quiosque e à quadra de esportes que serve como área de lazer para os mais de seis mil moradores. E foram eles quem autorizaram a instalação do circo por lá.
Foram os moradores também que conseguiram junto à prefeitura uma linha de ônibus que leva de lá até a Estação Mussurunga todos os dias. Do contrário, teriam que ir a pé pegar ônibus às margens da Estrada do CIA.
Segundo o secretário municipal de Infraestrutura, Habitação e Defesa Civil de Salvador, Paulo Fontana, a prefeitura disponibilizou linhas de ônibus e trocou a iluminação dos condomínios mais recentes do programa na capital – Ceasa 1 e 2 e Coração de Maria, e também já trabalha para instalar creches. Postos de saúde e escolas, no entanto, cabem, segundo ele, ao governo federal.
Em Barra do Jacuípe, a falta de infraestrutura também atrapalha a vida. O posto de saúde construído ao lado ainda não funciona. A escola e creche, que deveria ter sido inaugurada em 2015, não está pronta. Em nota, a prefeitura de Camaçari disse que entregará os três equipamentos neste mês.
Para sair de lá, muitos pais e mães precisam usar o ônibus do transporte escolar, já que a única linha que passa pelo local circula das 6h às 20h e tem poucos veículos. O CORREIO ficou cerca de duas horas no local e apenas dois ônibus passaram pelo condomínio. O jeito é pagar R$ 4 no chamado “ligeirinho”, um serviço clandestino com carros particulares